sábado, 3 de março de 2007

Historiografia e antropologia a partir de um texto de Ginzburg

GINZBURG, C. “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”. In: ____. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991. p. 203-14.

Carlo Ginzburg, historiador da cultura, nasceu em Turim em 1939 e ensina na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Além da obra citada, o autor possui diversos outros livros traduzidos para o Português: “O queijo e os vermes”, “História noturna”, “Os andarilhos do bem”, “Mitos, emblemas e sinais” e “Olhos de madeira”. Os três primeiros livros tratam de temáticas relativas à inquisição, heresia e bruxaria e os dois últimos reúnem, principalmente, ensaios teóricos.
Penso que o autor está preocupado com duas questões fundamentais: 1) a legitimidade das fontes utilizadas pelo pesquisador e 2) os fatores que estão implicados na relação do pesquisador com suas fontes. Para discutir estes dois problemas o texto vai estabelecer uma aproximação entre o trabalho do historiador e o do antropólogo.
O historiador interessado em pesquisar, por exemplo, o fenômeno bruxaria entre os séculos XVI e XVIII terá como fonte os relatos produzidos pelos inquisidores. O acesso às pessoas que vivenciaram a bruxaria na idade moderna, não é direto, mas mediado pela visão dos inquisidores. A relação entre os inquisidores e as vítimas acusadas de heresia é comparada à relação entre o antropólogo e o nativo.
Aparentemente, o antropólogo está em vantagem nesta comparação, pois teria um acesso não mediado ao fenômeno que pesquisa, além de partir para o campo de pesquisa com uma predisposição para relativizar suas concepções para estar mais permeável à visão de mundo do “outro”. Apesar disso, Carlo Ginzburg está disposto a aceitar que, em muitos casos, o antropólogo não está tão isento de interferências sobre seu “objeto” de estudo.
Alguns aspectos parecem tornar inquisidor e antropólogo muito próximos: 1) Se Clifford Geertz está correto ao afirmar que não existem interpretações de primeira mão e todo o trabalho do antropólogo é sempre uma interpretação de interpretações, então a diferença entre um trabalho e outro é apenas de grau e não de natureza; 2) Tanto o antropólogo, como o inquisidor estão envolvidos em um processo de inscrição de discursos orais; 3) Ambos estão preocupados não apenas em deitar discursos de origem oral no papel, mas também vertem discursos de um código lingüístico (do herege ou nativo) para outro (do inquisidor ou antropólogo).
Na minha opinião, a contribuição mais importante do texto é uma questão que aparece como secundária. Na articulação de sua argumentação em prol de uma comparação entre o trabalho do inquisidor e o do antropólogo, Carlo Ginzburg chama a atenção para a criação um novo campo de estudos, o da expressão religiosa heterodoxa. A partir de obras antropológicas sobre a bruxaria nos anos 60 e 70, alguns historiadores começaram a explorar as fontes inquisitoriais a partir de uma nova perspectiva. O tema da perseguição deixou de ser o único a ser revelado pelas fontes da Santa Igreja para dar espaço às expressões religiosas na forma como era revelada na fala das vítimas. Este novo olhar sobre as fontes inquisitoriais tem se mostrado muito fecundo. No Brasil obras significativas têm sido produzidas dentro do universo temático da heresia a partir das falas dos inquisidores, como é o caso de “O Diabo e a Terra de Santa Cruz”, “Inferno atlântico”, “A heresia dos índios” e “Um herege vai ao paraíso”.
Gostaria de destacar, ainda, algumas questões para discussão: 1) O autor está preocupado em estabelecer um diálogo entre a historiografia e a antropologia ou construir a legitimidade das fontes que utiliza em suas obras? 2) Que é interpretar para Ginzburg? Se interpretação é uma atividade infinita, qual a utilidade deste conceito/procedimento?