quinta-feira, 8 de março de 2007

Michel de Certeau e o estudo das religiões

CERTEAU, M. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 7-151.

O autor, que nasceu na França em 1925 e faleceu em 1984, era licenciado em Letras e Teologia, tendo se doutorado em Ciência das Religiões. Lecionou na Universidade de Paris VII e foi autor de vasta bibliografia, duas de suas obras são conhecidas do público brasileiro, “A invenção do cotidiano” e a “Escrita da história”.
A obra em destaque é uma coletânea composta de nove ensaios teóricos do autor. Não vou analisar a obra toda, mas apenas o prefácio, a introdução e os três primeiros capítulos: 1) Fazer história, problemas de método e problemas de sentido; 2) A operação historiográfica e 3) A inversão do pensável, a história religiosa do século XVII. Os três capítulos são variados do ponto de vista estilístico (o primeiro em linguagem mais cifrada e o segundo mais claro e didático), mas formam um coro em termos de preocupação teórica (todos estão voltados para o debate epistemológico do campo historiográfico). A análise de cada capítulo será seguida por uma exposição acerca das implicações que as afirmações teóricas de Michel de Certeau têm sobre o “objeto” que pesquiso, o discurso sobre o Diabo da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2002).
Parece-me que a questão central do primeiro capítulo é o debate sobre como é construído o discurso historiográfico. Este debate tem suscitado duas posições conflitantes: 1) um discurso que afirma que o conhecimento historiográfico se edifica sobre um passado que existe objetivamente, cujo acesso é permitido ao historiador pela mediação do documento e 2) um outro discurso que acentua que o conhecimento histórico se constrói a partir de questões que estão postas no presente vivido pelo historiador. Michel de Certeau não assume nenhum dos dois pontos de vista, ao mesmo tempo que procura fundamentar uma posição intermediária, que defende que o “fazer história” se dá exatamente no ponto de tensão entre o passado estudado pela mediação do documento e o presente que dita as preocupações e os direcionamentos que vão mobilizar os interesses do historiador. Por causa desta tensão entre temporalidades, a historiografia é uma forma de conhecimento e escrita que se situa no limiar entre a ficção e a realidade e em algum ponto entre a subjetividade e a objetividade.
Penso que o debate sobre o discurso sobre o Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus é um tema de cunho historiográfico que se encaixa bem na perspectiva proposta por Michel de Certeau. Eu diria que não se trata apenas de um objeto, nem de uma invenção arbitrária da minha subjetividade. Trata-se de um “subjeto”, um tema que está localizado no limite entre uma realidade que pode ser apreendida por uma série de documentos (livros, jornais, sermões, textos na Internet, folhetos e cartazes distribuídos pela igreja etc), ao mesmo tempo que aparece como resposta a demandas pessoais e sociais do tempo presente de se ouvir falar sobre o Diabo e a igreja do Bispo Macedo.
Este tema se insere em um universo de possibilidades aberto no campo historiográfico no tempo presente que certamente seria impossível de se transformar em “objeto” em tempos passados, quando outros temas teriam prioridade sobre este. Neste sentido, pesquisar discursos sobre o Diabo não é apenas uma questão de afinidade pessoal ao tema, mas também uma resposta ao campo de possibilidades aberto por historiadores no tempo presente.
No segundo capítulo o autor coloca seu foco sobre a operação historiográfica de uma forma mais detalhada e didática. Sua questão fundamental está voltada para a resposta a uma pergunta simples, porém fundamental para a historiografia: “O que fabrica o historiador quando faz ‘história’?” (p. 65). Concebo esta pergunta fundamental em consonância com as preocupações de Clifford Geertz quando diz que não se deve pensar uma área do saber a partir de suas concepções teóricas apenas, mas sobretudo a partir daquilo que seus adeptos fazem. O historiador produz historiografia, o que significa que está comprometido em produzir uma forma de conhecimento que está atrelada a uma série de regras típicas deste campo de especialização.
A resposta sobre o labor historiográfico vem primeiramente de forma sintética e concentrada para depois se diluir em uma argumentação extensa que toma a forma do seu texto como um todo: “Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como uma relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura).” (p. 66).
O texto tem três subdivisões, cada qual correspondendo a cada uma das três operações presentes no trabalho historiográfico: 1) um lugar social; 2) uma prática e 3) uma escrita. A partir deste critério, a operação histórica pode se diferenciar de outras operações: “A representação – mise en scène literária – não é ‘histórica’ senão quando articulada com um lugar social da operação científica e quando institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio, com relação aos modelos culturais ou teóricos contemporâneos.” (p. 93). O historiador fala sempre de um dado lugar social, segue critérios técnicos para coletar os dados sobre seu “objeto” e escreve também seguindo parâmetros do campo historiográfico.
O segundo capítulo me sugere algumas idéias importantes de caráter teórico para pensar o “objeto” discurso sobre o Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus. O texto me permite visualizar o todo de minha pesquisa. Faz-me pensar no labor historiográfico como uma ação articulada a um lugar social (resposta a uma demanda temática que clama pelo exótico no tempo presente), ao mesmo tempo que é uma prática disciplinada (deve seguir as regras e as possibilidades teórico-metodológicas do campo historiográfico), consumando-se em uma escrita (produção literária que visa a comunicação com meus pares e/ou com o leitor em geral).
No terceiro capítulo Michel de Certeau ainda está discutindo o problema cognitivo concernente à historiografia, sendo que desta vez não o faz abstratamente, mas pela mediação de um exemplo: a história religiosa francesa do século XVII. O capítulo está dividido em duas partes, uma que aborda o passado (a religião na França do século XVII) e a outra que aborda o presente (os condicionamentos do tempo presente a que está submetido o historiador da religião).
Penso que o autor também está preocupado neste capítulo em construir os fundamentos de uma análise do fenômeno religioso que o considere a partir de sua lógica interna e não a partir de condicionamentos externos. Para isso usa dois exemplos a serem refutados, a historiografia marxista, que procura explicar o religioso como reflexo de uma infra-estrutura econômica, e a historiografia confessional, que produz conhecimento sobre o sagrado com propósitos apologéticos. Michel de Certeau não nega o papel da filosofia da história implícita ou explícita em toda operação historiográfica, mas parece estar preocupado com as análises do fenômeno religioso que apenas o vêem como um reflexo de outra coisa diferente de si ou como uma forma de instrumentalizar interesses alheios.
Também este capítulo sugere importantes pistas para abordar o “objeto” que pesquiso. O texto me chama a atenção para pensar a relação do fenômeno religioso com o seu meio social, sem necessariamente cair em uma relação de causalidade ou causação. Ainda me desperta para pensar o meu “objeto” de modo a suspeitar de minha própria confessionalidade religiosa e os riscos de que ela intervenha negativamente nas análises que devo empreender no âmbito da Igreja Universal do Reino de Deus. O historiador da religião deve estar preocupado em produzir conhecimento academicamente rigoroso e não subsídios para uma apologia, seja ela secular ou religiosa.