terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Michel Foucault e o estudo de Israel Antigo

Introdução

Renomado filósofo e um dos intelectuais que mais exerceu influência sobre o mundo acadêmico contemporâneo, Michel Foucault nasceu em outubro de 1926 e faleceu em junho de 1984. Embora sua obra possa ser definida como tendo um caráter eminentemente filosófico, suas idéias tiveram forte repercussão sobre as ciências sociais e humanas de uma forma geral. A historiografia viria a ser a área pela qual Michel Foucault mais transitaria em sua reflexões filosóficas, fato que pode ser verificado no próprio título de seus principais trabalhos: “Doença mental e psicologia” (1954), “História da loucura na idade clássica” (1961), “O nascimento da clínica” (1963), “As palavras e as coisas” (1966), “Arqueologia do saber” (1969), “Vigiar e punir” (1975) e “História da sexualidade”, em três volumes, “A vontade de saber” (1976), “O uso dos prazeres” (1984) e “O cuidado de si” (1984).
Hoje parece haver um certo consenso entre os estudiosos e estudiosas do pensamento de Foucault em considerar que a sua obra se concentra na análise das práticas. Embora a análise das práticas seja uma continuidade nas reflexões do autor, sua obra seria composta de três fases: 1) arqueologia do saber, voltada para a análise das práticas discursivas, buscando compreender como se relacionam verdade e saber; 2) genealogia do poder, fase em que o autor procura observar como se constroem as práticas do poder a partir das suas relações com o saber e o corpo; 3) práticas de subjetivação, momento final de sua obra em que procura analisar o que as pessoas fazem de si mesmas.
Gilles Deleuze dizia que o cerne das reflexões de seu compatriota era o pensamento. Toda a sua obra esteve voltada para a investigação da seguinte questão: “Que significa pensar?” O foco das suas investigações estava colocado sobre a história, mas não para fazer história da vida privada, das mentalidades, dos comportamentos, das instituições, e sim do pensamento: “Uma história, mas do pensamento enquanto tal. Pensar é experimentar, é problematizar. O saber, o poder e o si são a tripla raiz de uma problematização do pensamento.” Por isso Foucault faz pesquisa histórica e não trabalho de historiador.[1]
O fato de ser um filósofo que transitou pelo campo da historiografia e refletiu sobre como se dava a construção de objetos da psicologia e da medicina fez com que o pensador francês fosse muitas vezes mal compreendido. Transitar no limiar de diversos campos (psicologia, medicina, historiografia), mesmo tendo com questão central o pensamento (objeto da Filosofia), é algo para pessoas ousadas e que acumularam uma vasta erudição, qualidades que Foucault certamente tinha, mas também teve o demérito de criar dificuldades de identificação por seus pares. Afinal, quem seriam os seus pares? Não tenho condições de responder por todos os campos acima citados, nem por outros que ainda poderiam ser mencionados, mas somente sobre a área pela qual transito. Por isso, antes de tecer considerações sobre a repercussão do pensamento de Foucault sobre a historiografia, gostaria de discutir algumas dificuldades de aceitação deste pensador pelos historiadores e historiadoras, bem como analisar sua relação com a historiografia da cultura.
Segundo Ronaldo Vainfas o livro “A nova história cultural”, hoje considerado um clássico em termos de teoria da historiografia da cultura, apresenta quatro modelos de história cultural:
1. a história da cultura à moda de Foucault; 2. a história da cultura dos “historiadores”, reduzida a uma comparação entre as idéias de E. P. Thompson e de Natalie Davis; 3. a história da cultura de inspiração nitidamente antropológica, limitada, no caso, a uma comparação entre Geertz e Sahlins; 4. a história cultural relacionada à crítica literária e à discussão das relações entre história e literatura, limitando-se o artigo a comparar Hayden White e Dominick Lacapra.[2]
O historiador brasileiro apresenta algumas restrições a estas supostas maneiras de se fazer história cultural. Não pretendo analisar todas as restrições, apenas chamo atenção para a observação que faz em relação à obra de Foucault: “No mais, o livro [“A nova história cultural”] apresenta incongruências notáveis, ao incluir entre os tais 'novos' modelos a obra de Foucault, que além de não ser nova contém um franco questionamento da história como forma de conhecimento do real.”[3]
É fácil concordar com a primeira afirmação de Vainfas. Posso citar como exemplo as primeiras páginas da “Arqueologia do saber” onde Foucault faz uma série de críticas à historiografia que ainda estão longe de fazer eco entre a maioria dos historiadores e historiadoras mesmo dos dias de hoje. Mas se as críticas à historiografia e as propostas para se fazer história problematizando conceitos e métodos tradicionais são antigos, a assimilação destas críticas e propostas é bastante nova neste campo. Se desde o fim dos anos 1960 Foucault começou a elaborar suas críticas e propostas, somente nos anos 1990 alguns historiadores e historiadoras começaram a produzir pesquisas que incorporaram suas idéias. Penso que a crítica de Vainfas, para ser mais adequada, deveria se dirigir à inércia, lentidão ou incapacidade dos historiadores em assimilar proposições teóricas.
A segunda crítica de Vainfas, a de que Foucault não merece ser apreciado como modelo teórico de historiografia da cultura porque questiona a história como forma de conhecimento do real, pode provocar um debate bastante interessante. Talvez a “antiga” explicação de Patricia O'Brien[4] sobre a resistência de historiadores da Europa e dos Estados Unidos ao pensamento foucaultiano também se aplique aos pesquisadores brasileiros: “A reação dos historiadores a Michel Foucault tem sido conflitante e problemática. Na França e nos Estados Unidos, a profissão tem demorado a reconhecer como um de seus membros alguém que não teve formação na disciplina histórica.” Não pode ser historiador alguém que não se graduou ou não se pós-graduou em história em uma universidade? Não pode ser considerada historiadora uma pessoa que questiona a pretensão de seus pares de serem os únicos a poderem dizer a “verdade” sobre o passado? Só pode ser historiador digno deste nome se pretender que sua fala sobre o passado corresponda sempre à realidade?
A historiadora brasileira Maragareth Rago parece fornecer um diagnóstico do problema da assimilação do pensamento de Foucault pelos historiadores e historiadoras de forma mais razoável. A resistência em relação ao pensamento de Foucault estaria nas suas críticas à pretensão do historiador ou historiadora de ser o único a poder dizer a verdade sobre o que aconteceu no passado, bem como na superficialidade das interpretações de seu pensamento.
Afinal, Foucault nunca foi óbvio e transparente, apesar de atentar para as superfícies e para o imediato que escapa ao olhar. Mal lido, mal escutado, mal compreendido, o filósofo foi soterrado por interpretações e críticas que invalidam seu aporte. Mais ainda, vários de seus conceitos e problematizações são incorporados à sua revelia nos estudos históricos, sem que lhe reconheçam os créditos.[5]
Na forma como Rago compreende o pensamento foucaultiano, o filósofo não seria um assassino da história, mas seu “defensor”. Claro que Foucault tece críticas a determinadas maneiras de se pensar e produzir história, mas sua obra sempre dependeu da dimensão temporal, elemento fundamental à historiografia.
Algumas décadas atrás, exatamente quando a História Social, de inspiração marxista, ganhava espaço na academia, questionando o establishment ao posicionar-se contra certo positivismo na produção do conhecimento histórico, Foucault, na contramão, publicava A Arqueologia do Saber, seu livro de 1969, partindo em defesa da História. Denunciava os atentados aos seus direitos, quando se ignoram os acidentes, os acasos, os desníveis, em nome de uma homogeneização totalizadora quando se é incapaz de pensar as descontinuidades .[6]
Dois anos depois de publicar “A arqueologia do saber”, o filósofo francês voltaria a tecer críticas severas ao trabalho dos historiadores e historiadoras. Em 1971, no seu texto “Nietzsche, a genealogia e a história”, Foucault se basearia no filósofo alemão do século XIX para mostrar os problemas decorrentes de um modo de fazer historiografia que qualificava como teleológico ou racionalista.[7] Algumas das dificuldades que Foucault encontrava na historiografia teleológica eram: 1) tendência a dissolver o acontecimento singular em uma continuidade ideal, um movimento teleológico ou encadeamento natural; 2) procura lançar um olhar para o distante, como as épocas mais distantes, as formas mais elevadas, as idéias mais abstratas ou as individualidade mais puras e 3) nega ser um conhecimento perspectivo.
Em oposição à visão teleológica da história, em voga em seu tempo, Foucault propõe um trabalho historiográfico que se aproxime da genealogia nietzschiana, o que iria chamar de história “efetiva”. Esta maneira de fazer historiografia seria caracterizada da seguinte maneira: 1) considera que a história é marcada por um jogo de forças que não obedecem a uma destinação, mas somente seguem o acaso da luta; 2) lança seus olhares sobre o que está próximo, como o corpo, o sistema nervoso, os alimentos, a digestão e as energias e 3) não teme ser um saber perspectivo.[8]
Pelo que se pode ver pelos argumentos acima expostos, Foucault não se coloca como um inimigo ou assassino da historiografia de uma forma geral, mas como crítico de um determinado modo de fazer historiografia. O filósofo francês não apenas critica o modo tradicional de se fazer história, mas demonstra o que compreende ser a tarefa da historiografia desde a sua perspectiva.
Penso que para não ficar apenas no ato de refutar críticas ao pensamento de Foucault, caberia agora demonstrar em que consistiria produzir uma pesquisa histórica sob influência do seu pensamento. Em um estudo de caráter historiográfico sobre Israel Antigo o pensamento de Foucault pode contribuir de duas formas: 1) na construção do próprio “objeto” de pesquisa através do conceito de prática discursiva e 2) no estabelecimento de parâmetros metodológicos de investigação do “objeto” a partir do conceito de genealogia.

1) Israel Antigo como discurso

Se o historiador se ocupa não do que fazem as pessoas, mas do que dizem, o método a ser seguido será o mesmo; a palavra discurso ocorre tão naturalmente para designar o que é dito quanto o termo prática para designar o que é praticado. Foucault não revela um discurso misterioso, diferente daquele que todos nós temos ouvido: unicamente, ele nos convida a observar, com exatidão, o que é assim dito.[9]
Vou tomar como ponto de partida as considerações de Foucault sobre a historiografia no primeiro capítulo de “A arqueologia do saber”.[10] No início do capítulo, o filósofo francês diz qual será o seu objeto de análise, os problemas teóricos, e qual será o universo empírico a partir do qual tecerá suas considerações: a história das idéias, do pensamento, das ciências, do conhecimento.
O texto começa com proposições negativas, procedimentos que devem ser descartados pelo historiador: 1) Libertar-se de um jogo de noções que servem de variações ao tema da continuidade: tradição, influência, desenvolvimento, evolução, mentalidade e espírito; 2) Inquietar-se diante de certos recortes/agrupamentos que se tornaram familiares: política, literatura, livro e obra; 3) Renunciar a dois temas ligados entre si e que se opõem: um que nega ser possível assinalar a irrupção de um acontecimento verdadeiro no âmbito do discurso e outro que afirma que todo discurso manifesto repousa sobre um já dito.
Tendo analisado o que vai ser descartado, Foucault afirma que o historiador deve se ocupar com a análise do campo discursivo. Para tal análise, o autor deixa três recomendações importantes: 1) Suprimir as unidades inteiramente aceitas para dar lugar ao enunciado e sua singularidade como acontecimento; 2) Tornar-se livre para descrever jogos de relações entre enunciados diferentes e entre estes e práticas; 3) Descrever unidades a partir de um conjunto de decisões controladas.
Em outro importante trabalho[11], Michel Foucault também fornece alguns dados fundamentais para a análise do campo discursivo. O texto possui quatro subdivisões. No primeiro item faz uma apresentação do problema que pretende tratar: a importância da autoria de uma determinada fala/obra. Segundo o filósofo francês, a crítica literária tentou decretar a morte do autor, mas noções que deveriam substituí-lo são demasiadamente problemáticas. A crítica literária procurou se ocupar de uma obra sem precisar fazer referência ao seu autor empírico externo, todavia, esta alternativa esbarra nas dificuldades de se estabelecer critérios para delinear os seus limites. Outra noção que deveria dispensar a referência ao autor é a de escrita, mas ela acaba por se transformar no registro de uma ausência, trazendo no seu seio evidências de uma transcendentalidade.
No segundo item analisa os problemas suscitados pelo nome do autor. O nome do autor não é simplesmente um nome próprio como os demais, pois possui três características importantes e distintivas: 1) Assegura uma função classificatória (agrupar, delimitar, excluir textos); 2) Permite caracterizar o modo de ser de um determinado discurso; 3) Estabelece o status de um dado discurso.
No terceiro item o texto atinge o seu auge e Michel Foucault passa a fazer uma análise da função do “autor”, que possui quatro características: 1) Exerce função de apropriação; 2) Não é exercida de maneira universal e constante em todos os discursos; 3) Resulta de uma operação complexa que constrói um certo ser de razão que se chama autor; 4) Comporta simultaneamente vários egos e várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos possam vir a ocupar. No final do item há um parágrafo que sintetiza bem estas quatro funções[12].
No quarto item o filósofo francês faz uma análise do que denomina de posição de transdiscursividade. A idéia é a de que é possível ser autor de algo mais amplo que um texto ou um livro. Há autores e autoras que são verdadeiros fundadores de discursividade, pois estabelecem possibilidades infinitas de discursos, ao construírem teorias, tradições de pensamento ou disciplinas.
A parte mais importante, do ponto de vista prático, para a análise do “objeto” História de Israel é a conclusão de sua conferência, onde Foucault lamenta ter concentrado suas análises em proposições negativas e passa a conjeturar em que consistiria um trabalho mais construtivo/positivo. Uma análise construtiva procuraria responder a algumas perguntas: 1) Em que condições um sujeito aparece em um determinado discurso? 2) Que lugar um sujeito ocupa em um tipo de discurso? 3) Que funções o discurso exerce? 4) Que regras regem o discurso?
Seria interessante, ainda, analisar “A ordem do discurso”, a aula inaugural proferida por Foucault no Collège de France em 1970. A importância deste texto se deve ao fato de apresentar uma conexão entre os dois conceitos, o de discurso, acima apresentado e debatido, e o de genealogia, que será objeto de reflexão logo abaixo.
Na forma como compreendo, “A ordem do discurso” pode ser dividida em duas grandes partes. Na primeira parte da aula Foucault faz um trabalho mais crítico ao analisar os mecanismos de controle dos discursos. Estes mecanismos de controle estão divididos entre os que são externos ao próprio discurso (interdição, rejeição e oposição verdadeiro/falso), os que são internos ao próprio discurso (atribuição de um caráter especial a alguns discursos, reconhecimento de uma autoridade especial no “autor” de um determinado discurso, “disciplinarização” dos discursos) e os de estabelecimento de regras de funcionamento dos discursos (rarefação, criação de sociedades de circulação restrita de discursos, difusão de doutrinas e educação). Esta primeira parte da aula termina com um questionamento acerca do papel da filosofia: Não estaria também ela funcionando como um mecanismo de controle dos discursos?
Na segunda parte da aula o autor é mais propositivo e acaba por se deter nos mecanismos de análise dos discursos. O trabalho anterior de desconstrução agora dá lugar para a construção de estratégias de análise do discurso, tarefa que será desenvolvida por Foucault nos cursos que ministrará no Collège de France nos anos seguintes. Estes mecanismos de análise envolvem certas exigências de método (inversão, descontinuidade, especificidade e exterioridade) e a aplicação deste método segundo a disposição de dois conjuntos (conjunto crítico e conjunto genealógico).
De uma parte, o conjunto “crítico”, que põe em prática o princípio da inversão: procurar cercar as formas da exclusão, da limitação, da apropriação de que falava há pouco; mostrar como se formaram, para responder a que necessidades, como se modificaram e se deslocaram, que força exerceram efetivamente, em que medida foram contornadas. De uma outra parte, o conjunto “genealógico” que põe em prática os três outros princípios: como se formaram, através, apesar, ou com o apoio desses sistemas de coerção, séries de discursos; qual foi a norma específica de cada uma e quais foram suas condições de aparição, de crescimento, de variação.[13]
Como se pode notar pela citação acima, Foucault reconhecia no procedimento genealógico uma estratégia metodológica, sempre associado ao trabalho crítico, para a análise de discursos. Mais detalhes sobre este procedimento metodológico serão explorados a seguir.

2) Por uma genealogia do Israel Antigo

O historiador francês Paul Veyne parece ter compreendido e assimilado com muita precisão a proposta e a prática historiográficas de Michel Foucault. A interação com a obra do filósofo-historiador compatriota o teria levado a reavaliar sua própria produção historiográfica. A reavaliação de sua obra aparece acompanhada de uma detalhada exposição teórica do que seria fazer historiografia em uma perspectiva foucaultiana:
A história-genealogia à Foucault preenche, pois, completamente o programa da história tradicional; não deixa de lado a sociedade, a economia, etc., mas estrutura esta matéria de outra maneira: não os séculos, os povos nem as civilizações, mas as práticas; as tramas que ele narra são a história das práticas em que os homens enxergam verdades e das suas lutas em torno das suas verdades. Esse modelo de história, essa “arqueologia”, como a chama seu inventor, “desdobra-se na dimensão de uma história geral”.[14]
Além da ênfase na descrição e análise das práticas, a historiografia foucaultiana implica em um processo de desnaturalização de objetos consagrados, bem como na necessidade de se pensá-los sempre relacionalmente, através do procedimento genealógico/arqueológico:
Toda história é arqueológica por natureza e não por escolha: explicar e explicar a história consiste, primeiramente, em vê-la em seu conjunto, em correlacionar os pretensos objetos naturais às práticas datadas e raras que os objetivizam, e em explicar essas práticas não a partir de uma causa única, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais se ancoram. Esse quadro pictórico produz quadros estranhos, onde as relações substituem os objetos.[15]
O procedimento genealógico não pode ser confundido com uma procura pela origem histórica de um determinado fenômeno/objeto. O/a genealogista dimensiona historicamente os “objetos”, não para explicar as suas origens e sim para demonstrar como são constituídos como tais:
De acordo com Foucault, a tarefa do genealogista é destruir a primazia das origens, das verdades imutáveis. Ele tenta derrubar as doutrinas do desenvolvimento e do progresso. Uma vez destruídas as significações ideais e as verdades originais, ele se volta para o jogo das vontades. Sujeição, dominação e luta são encontradas em toda parte. (...) Em vez de origens, significados escondidos ou intencionalidade explícita, Foucault, o genealogista, vê relações de força funcionando em acontecimentos particulares, movimentos históricos e história.[16]
O próprio Michel Foucault, ao fazer um balanço de suas aulas ministradas em anos precedentes no Collège de France, define o procedimento genealógico da seguinte forma:
Chamemos, se quiserem, de “genealogia” o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais. (...) Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns.[17]
Mantendo o tom coloquial do discurso verbal, adiante Michel Foucault acrescenta mais alguns detalhes importantes para a elucidação do procedimento genealógico:
A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. A reativação dos saberes locais (...) contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos, esse é o projeto dessas genealogias em desordem e picadinhas. Eu diria em duas palavras o seguinte: a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir destas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem. Isso para reconstituir o projeto de conjunto.[18]
Um exemplo tirado da obra de Michel Foucault certamente poderia ilustrar seu procedimento genealógico. O contexto é o de uma aula no Collège de France onde está fazendo uma introdução ao seu estudo, que desta vez versa sobre a anomalia:
Eu gostaria de começar hoje a análise desse domínio da anomalia tal como funciona no século XIX. Eu queria tentar lhes mostrar que esse domínio se constitui a partir de três elementos. Esses três elementos começam a se isolar, a se definir a partir do século XVIII e eles fazem a articulação com o século XIX, introduzindo esse domínio da anomalia que, pouco a pouco vai recobri-los, confiscá-los, de certo modo colonizá-los, a ponto de absorvê-los. Esses três elementos são, no fundo, três figuras ou, se vocês quiserem, três círculos, dentro dos quais, pouco a pouco, o problema da anomalia vai se colocar.[19]
Após sua introdução, passa a fazer uma breve descrição de cada uma das três figuras que vão preceder o anormal, a começar pelo monstro humano:
A primeira dessas figuras é a que chamarei de ‘monstro humano’. O contexto de referência do monstro humano é a lei, é claro. A noção de monstro é essencialmente uma noção jurídica – jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele se constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza.[20]
A segunda figura “ancestral” do ser humano anormal é o indivíduo a ser corrigido:
A segunda, sobre a qual retornarei mais tarde e que também faz parte da genealogia da anomalia e do indivíduo anormal, é a que poderíamos chamar de figura do ‘indivíduo a ser corrigido’. Ele também é um personagem que aparece nitidamente no século XVIII, até mais recentemente, o monstro, como vocês verão tem uma longuíssima ascendência às suas costas. O indivíduo a ser corrigido é, no fundo, um indivíduo bem específico dos séculos XVII e XVIII – digamos da Idade Clássica. (...) O indivíduo a ser corrigido vai nesse jogo, nesse conflito, nesse sistema de apoio que existe entre a família e, depois, a escola, a oficina, a rua, o bairro, a paróquia, a igreja, a polícia, etc.[21]
A terceira e última figura antecessora do ser humano anormal é o masturbador:
Quanto ao terceiro, é o ‘masturbador’. O masturbador, a criança masturbadora, é uma figura totalmente nova no século XIX (é na verdade própria do fim do século XVIII), e cujo campo de aparecimento é a família. É inclusive, podemos dizer, algo mais estreito que a família: seu contexto de referência não é mais a natureza e a sociedade como no caso do monstro, não é mais a família e seu entorno como no caso do indivíduo a ser corrigido. É um espaço muito mais estrito. É o quarto, a cama, o corpo; são os pais, os tomadores de conta imediatos, os irmãos e irmãs; é o médico – toda uma espécie de microcélula em torno do indivíduo e do seu corpo.[22]
Através deste exemplo, é possível perceber como o pensador francês, pelo procedimento genealógico, vai desnaturalizando o “objeto” anormalidade tal como havia se constituído no século XIX. Partindo do momento em que a categoria anormalidade está constituída, o século XIX, começa a fazer uma digressão histórica para encontrar o que existia, enquanto discurso e prática, antes da anomalia. Michel Foucault faz uma história ao contrário. Ao invés de buscar uma explicação teleológica do presente pelo passado, desnaturaliza os objetos tal como estão constituídos no presente, mostrando que no passado havia algo (discursos e práticas) diferente no seu lugar.
Penso que as pesquisas acima mostram algo de suma importância a ser investigado desde uma perspectiva foucaultiana. A concepção de genealogia no pensamento de Foucault não revela uma busca pela mais remota e verdadeira origem de um fenômeno, mas procura colocar o pesquisador ou pesquisadora em contato com as descontinuidades históricas e as mutações de práticas correlacionadas a um dado fenômeno. Este seria o caminho para se conhecer as práticas em voga no presente e as perspectivas de transformação destas.
Entendo que as considerações teóricas acima debatidas têm implicações muito significativas para modo como pensamos o “objeto” história de Israel. Este campo tem sido marcado por noções ou conceitos cristalizados que precisam ser desconstruídos ou desnaturalizados de modo a nos permitir ver relações que antes não enxergávamos. Posso tomar como exemplo os termos já consagrados pelos estudiosos e estudiosas de Israel como pré-exílio, exílio e pós-exílio. Esta nomenclatura precisa ser descartada porque “tende a passar por alto questões importantes do período e até a separar a unidade fundamental do processo de dispersão/reconstrução.” A expressão exílio, que é o critério tradicional para delimitar cronologicamente a história de Israel, designa uma “remoção compulsória provisória da terra que se invertia completamente na próxima oportunidade ...”, o que não parece ter sido o caso dos judeus nos períodos sob hegemonia babilônica e persa. O fato é que o retorno dos judeus às suas terras foi patrocinado por Ciro, medo-persa, e não pelos babilônios, que haviam promovido a remoção. Além disso, quando Ciro começa o processo de patrocinar o retorno dos judeus às suas terras, não são todos que estão interessados em retornar. Por isso, a expressão dispersão é preferida por nosso autor. Ele pensa que dispersão “tornava-se a realidade para grande número de judeus, e em muitas ocasiões era condição auto-sancionada de vida, preferível às incertezas e injustiças da vida na Palestina.”[23] Ou ainda, entre os séculos VI e I a.C. sempre existiu uma comunidade judaica na Palestina, mesmo que com um estilo de vida limitado. Também entre os séculos VI e I a.C. sempre existiu comunidades de judeus espalhadas pelo exterior, muitas vezes crescentes até mesmo em decorrência da necessidade dos judeus de que viver no exterior era uma possibilidade econômica muito mais plausível do que ficar nas precárias terras judaítas.[24]
Pelos motivos expostos acima, Gottwald está disposto a descartar a nomenclatura exílio e pós-exílio para se referir ao período persa pelas muitas limitação e imprecisões. Por outro lado, prefere a nomenclatura “colonialismo judaico”. O nosso autor explica os dois sentidos que dá a colonialismo judaico: 1) “Colonialismo judaico como instalação extensa ou colonização de judeus em terras estrangeiras”; 2) “Colonialismo judaico como subserviência de todos os judeus ao domínio político de grandes impérios.”[25]
[1] DELEUZE, G. Foucault, p. 124.
[2] VAINFAS, R. Os protagonistas anônimos da história: micro-história, p. 57-58.
[3] Ibid., p. 59.
[4] “A história da cultura de Michel Foucault”, In: HUNT, L. A nova história cultural, p. 36. O livro é o mesmo supra citado e que serve de base às críticas de Vainfas.
[5] “Libertar a história”, In: RAGO, M. et ali, Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas, p. 255.
[6] Ibid., p. 257.
[7] FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder, p. 28.
[8] Ibid., p. 28-30.
[9] VEYNE, P. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história, p. 252.
[10] FOUCAULT, M. A arqueologia do saber, p. 23-34.
[11] Id., O que é um autor? In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault: estética: literatura e pintura, música e cinema.
[12] Ibid., p. 279.
[13] Id., A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, p. 60-1.
[14] VEYNE, P. op. cit., p. 280.
[15] Ibid., p. 280.
[16] RABINOW, P. & DREYFUS, D. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica, p. 121.
[17] FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976), p. 13.
[18] Ibid., p. 14-15.
[19] Id., Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975), p. 69.
[20] Ibid., p. 69.
[21] Ibid., p. 71-72.
[22] Ibid., p. 73-74.
[23] Norman K. GOTTWALD, Introdução sócio-literária à Bíblia Hebraica, p. 394.
[24] Ibid., p. 395.
[25] Ibid., pp. 395. Vejamos com mais detalhes a argumentação de Norman K. GOTTWALD sobre este assunto: “Todos os judeus, quer reintegrados em Judá, quer colonizados no exterior, estavam submetidos ao poder soberano dos grandes impérios, que sucessivamente os governaram. A única exceção a esta regra foi o período da dinastia asmonéia judaica na Palestina desde 140 até 63 a.C., que se tornou possível por fraqueza estrutural no império selêucida e acabou pela incursão do poder romano mais estável na Palestina. As colônias judaicas no exterior não eram só politicamente sujeitas, mas também dependentes da tolerância, para sobrevivência judaica, da diversidade cultural e religiosa. Foi o patrocínio do governo persa que permitiu a própria restauração e reconstituição da Judá propriamente dito, e as linhas principais dos arranjos projetados para governo próprio limitado continuaram em vigor através das épocas persa, , macedônica, ptolemaica e começos da selêucida, até a deflagração da guerra civil e revolta aberta na época dos Macabeus. A autonomia dos judeus na Palestina, dividida em jurisdições políticas e religiosas, foi uma forma colonial de governo sobre a qual o império mantinha poder definitivo de veto. Isso significava que se tornava difícil lançar ou sustentar quaisquer mudanças institucionais em Judá que não recebessem aprovação da política administrativa imperial.” (pp. 395-6).