segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Que é exorcismo?

Exorcismo sempre caminhou ao lado de possessão, isto porque exorcizar significa, de forma simples e introdutória, expulsar, fazer sair, os demônios que estão no controle psíquico e espiritual de uma dada pessoa. Alguns sinais de possessão comuns são: 1) rosto transfigurado, tenso, contorcido; 2) alteração no timbre de voz que na maioria das vezes fica mais intensa e grave; 3) há um “outro” ser (demônio) que fala pela pessoa possessa mas que não é o seu “eu” e 4) corpo entra em convulsão como decorrência de uma excitação emocional. Quando estes sinais, ou alguns deles, são notados, pode ser necessário que a pessoa seja submetida a um exorcismo.
A crença em demônios e, como consequência, a possibilidade de uma pessoa estar possessa e precisar de exorcismo não é um fenômeno muito difundido no Antigo Testamento. Já no Novo Testamento há vários relatos de exorcismos realizados, sobretudo embora não somente, por Jesus (Mt 8, 28-34; 15,21-28; 17,14-21; Mc 1, 21-28; 5,1-20; 7,24-30; 9,14-24 e Lc 4,33-37; 8,26-39; 9,37-43). O verbo grego usado para designar a ação de exorcizar uma pessoa pode ser bem traduzido por expulsar, expelir, lançar fora usando relativa força.
Embora a possessão seja um fenômeno bastante comum na prática de Jesus e, em decorrência disto, tenha sido comum no cristianismo antigo e medieval, passou a ser questionada a partir da modernidade. Quando a possessão passou a ser encarada como um fenômeno que apenas poderia caber em um mundo culturalmente marcado por uma cosmovisão mágica, como teria sido o caso das sociedades neotestamentárias, a prática do exorcismo começou a se tornar algo raro. O auge desta descrença na possessão e na conseqüente falta de necessidade de se exorcizar iria atingir seus contornos mais radicais ao longo do século XIX. Com o cientificismo difundido pela filosofia positivista os casos antes considerados como possessão passaram a ser vistos como problemas psiquiátricos.
O filme “O exorcista” é um bom exemplo desta descrença na possessão demoníaca e na raridade do ato de exorcizar, bem como da psiquiatrização do fenômeno. O filme em sua primeira versão foi trazido a público no ano de 1973 e seus principais protagonistas são: 1) Chris, uma jovem senhora, divorciada, atriz profissional, aparentemente rica e mãe de Regan; 2) Regan, a filha de Chris, que será a vítima de possessão; 3) Damien, padre, psiquiatra, jovem e um exorcista pouco experiente e 4) Merrin, padre, arqueólogo, idoso e um exorcista bastante experiente.
A própria apresentação dos personagens já sugere um entrecruzamento de dois discursos sobre a possessão, o discurso científico (psiquiatria e arqueologia) e o discurso religioso católico romano (os dois exorcistas são padres). O padre mais jovem (Damien) incorpora, inicialmente, um personagem bastante marcado pela ambigüidade causada pelos discursos científico e religioso. Sua dupla formação, sacerdócio e psiquiatria, coloca-o sob a pressão de duas formas distintas de explicar o mesmo fenômeno. Sua ambigüidade será superada no decorrer do filme, à medida que o discurso científico não se sustenta como forma de explicar o estado em que a possessa se encontra. Parece-me que este padre jovem, que chega a professar sua incredulidade, acaba tendo sua fé restaurada ao ter convicção de que estava lidando com algo sobrenatural de fato e não com uma patologia psiquiátrica.
O enredo do filme também exemplifica este choque entre os discursos científico e religioso. Uma menina (Regan) bonita, saudável, carinhosa, feliz e rica começa a manifestar sintomas de possessão. O processo é gradativo. Começa com a escuta de vozes e leves temores. A situação vai aos poucos se agravando até culminar em uma possessão inquestionável e estremecedora. Neste percurso vivido pela jovem, a sua mãe (Chris) vai sendo cercada por explicações. Primeiro a ciência (psiquiatria) procura diagnosticar a “doença” da menina, em seguida, a religião (Catolicismo Romano) entra e cena para resolver a questão. A religião só pode entrar em cena depois que a ciência assume a sua impossibilidade de explicar e tratar do “problema”.
A cena, cheia de ironia, que marca a transição do tratamento científico para o religioso é muito interessante. Uma equipe de 88 médicos está reunida para diagnosticar o distúrbio da menina. Eles não conseguem entrar em um consenso sobre o diagnóstico da “doença”, mas concordam quanto ao tratamento. Os próprios médicos recomendam o exorcismo, segundo um dos personagens cientistas “uma prática em desuso, mas que dá resultado”, mesmo que não seja “pelos motivos alegados pelos religiosos”. É preciso chegar a quase metade do filme até que a ciência decrete sua incapacidade em tratar da questão. A ação religiosa começa a ganhar terreno como tratamento por sugestão e incapacidade da ciência A mãe da menina começa sua busca por um padre que possa fazer o exorcismo, uma outra longa jornada, uma vez que se trata de uma “prática em desuso”.
Mesmo para o Catolicismo Romano, explicar e tratar do problema é um longo processo, pois não se trata de uma religião simplesmente, mas de uma religião invadida pela lógica científica. O exorcismo só poderá ser realizado quando houver uma série de evidências que demonstrem que se trata de uma questão espiritual e no psiquiátrica. O padre e psiquiatra Damien reluta bastante até aceitar visitar a menina para averiguar que se trata mesmo de uma possessão. Em princípio o padre diz para a mãe da menina “doente” que a possessão não existe mais. Acrescenta que a psiquiatria criou uma nomenclatura para explicar a “doença”.
Sua concepção somente mudará depois que fizer algumas visitas a Regan. Em sua primeira visita a possessa lhe diz que é o demônio e vomita na sua cara. O padre diz que não pode fazer o exorcismo, pois a igreja exigiria “provas irrefutáveis” como falar um idioma que a menina jamais aprendera em sua vida. Damien fala em Latim com Regan e o demônio responde. O padre joga água benta sobre a menina e o demônio grita. Finalmente, a possessa fala uma língua em princípio desconhecida. Depois de averiguar, o padre constata que se tratava de Inglês falado de trás para frente.
Em uma outra ocasião a criada da casa manda chamar o padre para que ele observe uma inscrição no abdômen da possessa, “Help me”. Parece ser este o momento em que o clérigo se convence de que se trata de uma possessão de fato, mas o exorcismo não pode ainda ser realizado. O padre tem que pedir autorização para seus superiores. Damien recebe autorização para fazer o exorcismo, mas é advertido a contar com a ajuda de uma pessoa mais experiente no assunto, o padre Merrin.
Penso que é este vácuo/silêncio da Igreja Católica sobre a possessão que vai ser ocupado pelo neopentecostalismo nos dias de hoje. Se o Catolicismo Romano silenciou ou psiquiatrizou a possessão, o neopentecostalismo despsiquiatrizou a ação demoníaca e passou a anunciá-la com alto-falantes. Não apenas recolheu de volta o discurso sobre o Diabo, mas passou a construí-lo como estratégia de combate à própria igreja católica (e à Umbanda também) ao demonizá-la e responsabilizá-la pela demonização das pessoas. Enquanto a igreja católica procura silenciar ou rarificar o assunto, o neopentecostalismo o transforma em explicação e conseqüência de todos os males que afetam a vida das pessoas. Proponho uma interpretação do exorcismo no neopentecostalismo a partir de quatro aspectos.
1) Exorcismo como demonização do “outro”. O neopentecostalismo é um fenômeno relativamente novo. Sua identidade está ainda em vias de construção. O seu principal meio de construção da identidade teológica e ritual não é afirmativo, mas sobretudo negativo. O neopentecostalismo constrói sua identidade no campo religioso brasileiro mediante negação e ridicularização das religiões concorrentes. De acordo com a conveniência e dependendo da situação, qualquer religião pode ser desautorizada pela liderança neopentecostal: evangélicos, pentecostais, católicos romanos, umbandistas e candombleístas.
Nos momentos de exorcismo as religiões afro-brasileiras recebem destaque, certamente, porque estas funcionam com uma prática ritual muito semelhante ao neopentecostalismo. A possessão pelos orixás da Umbanda e do Candomblé se transforma em possessão demoníaca no neopentecostalismo. As referências às religiões afro-brasileiras são as mais diretas e demonizadoras. Chama muito a atenção o fato de os demônios serem identificados com os nomes dos orixás das religiões afro-brasileiras. Alguns nomes são mencionados pelos dirigentes com freqüência quando estão ordenando a manifestação dos demônios (Pomba-gira, Exu, Exu-caveira, Exu-da-encruzilhada, Exu-capa-preta, Exu-do-lodo, Exu-sete-capas, Exu-da-morte, Tranca-rua, Zé-Pilintra, Caboclo, Preto-velho, Maria-mulambo, Giramundo).
2- Exorcismo como teatralização das aflições do cotidiano. O rito de exorcismo, como um dos acontecimentos mais importantes dos cultos destas igrejas, é uma teatralização. Uso a palavra teatro como uma metáfora para designar uma forma de culto em que as pessoas são instigadas a encenar seus dramas sociais através de ritos, gestos, ações, palavras.
A liderança neopentecostal tem uma preocupação em preparar o cenário (templo), treina seus atores principais (pastores e bispos), prepara os objetos que vão entrar em cena (lenço, sal, envelopes, água, cajado), cria uma trama (a vida de pessoas sem Jesus e suas aflições), apresenta uma solução (exorcismo) e ensaia um final feliz (libertação). Não poderiam faltar na cena os atores coadjuvantes, os milhares de pessoas que adentram aos templos não apenas para assistir ao espetáculo, mas para dele participar e ali encenar seus dramas sociais.
3- Exorcismo como rito de passagem. Pela mediação do rito de exorcismo a pessoa passa de um estado de aflição para um estado de prosperidade. A nomenclatura exorcismo quase não está presente no vocabulário neopentecostal. A palavra libertação é preferida pela liderança da igreja. Os demônios são expulsos da vida das pessoas para que elas possam viver em prosperidade.
Os demônios atuam na vida das pessoas com o propósito de afastá-las de Deus. Enquanto as pessoas estão sob influência demoníaca, não podem passar para um estado de abundância. É necessário lembrar que o universo demoníaco está sempre associado às demais religiões, sobretudo as religiões afro-brasileiras, que “emprestam” os nomes de seus orixás para o neopentecostalismo nomear seus demônios. A passagem para o estado de abundância e prosperidade implica em uma ruptura com um estado de aflição, que por sua vez está associado às demais religiões. Logo, o processo de desdemonização implica em ruptura com outras religiões e, simultaneamente, é um processo de adesão ao neopentecostalismo. O exorcismo, enquanto rito que faz a intermediação entre dois estados, é fundamental para a construção do sentido de pertença do fiel à sua nova comunidade de fé. O rito de exorcismo pode ser descrito e analisado a partir do conceito de liminaridade.
Victor W. Turner, baseado nos estudos de Arnold van Gennep, diz que o rito de passagem, enquanto rito de transição, é caracterizado por três fases: 1) separação, 2) margem ou liminar e 3) agregação. A primeira fase implica em um afastamento de uma situação social, a segunda é marcada pela ruptura com o estado anterior, mas ainda não traz os sinais culturais do novo estado e na terceira há uma reagregação do indivíduo e a passagem de um estado para outro se consuma. Aplicando o conceito do referido autor ao meu “objeto” empírico, pode-se dizer que a situação em que se encontra um fiel neopentecostal é um estado de aflição; começa, então, o processo de três fases: 1) afastamento do estado de aflição (morte, doença, dor, crise existencial, pobreza, vício, desagregação familiar); 2) entrada em uma igreja neopentecostal onde a pessoa é exorcizada, seja exposta no palco onde todos podem vê-la, ou no meio da multidão sem ser quase notada; através do exorcismo começa a transição para um outro estado/situação; 3) consolidação da ruptura com a antiga situação, o estado de aflição, e ingresso em uma vida próspera (vida, saúde, ausência de dor, sentido para a vida, riqueza, ausência de vício, família estruturada).
4- Exorcismo como teodicéia. No rito de exorcismo está presente uma explicação para o sofrimento humano. Há um Deus Todo-poderoso que ama e abençoa a quem tem fé. Mas há o Diabo e seus subalternos, os demônios, que estão o tempo todo planejando toda sorte de desgraça. Por isso, há dor no mundo, há morte, há injustiça, há pobreza, há doença etc. Deus não é o culpado por tudo, mas o adversário de Deus, o Diabo, juntamente com sua corja de demônios, é o responsável pela dor. Os constantes exorcismos no âmbito das igrejas neopentecostais difundem a sua teodicéia. O mal não é um conceito sobre o qual os dirigentes neopentecostais discursam somente, mas uma realidade experimentada por todos aqueles que ficam possessos. O neopentecostalismo não apenas nomeia o mal, mas apresenta solução, a libertação do mal mediante o rito de exorcismo. O exorcismo não só é uma forma ritualizada de construir e manter a teodicéia neopentecostal, mas uma forma de demonstrar a eficácia desta teodicéia, uma vez que o mal não somente é explicado, mas também se lhe é apresentada uma alternativa.

O EXORCISTA. Dir. Willian Friedkin. Manaus: Videolar, 1973. DVD (132 min).
OLIVA, A. S. O Diabo e seus demônios na Igreja Universal do Reino de Deus: teologia e rito de exorcismo na Catedral da Fé na cidade de Fortaleza. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2001. (Dissertação de Mestrado em Sociologia).
RABUSKE, I. J. Jesus exorcista: estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30. São Paulo: Paulinas, 2001.
RUSSEL, J. B. O diabo: as percepções do Mal da Antigüidade ao Cristianismo Primitivo. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
SATANFORD, P. O Diabo: uma biografia. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003.