domingo, 25 de fevereiro de 2007

Protestantismo, modernidade e subjetividade

O Protestantismo, simbolicamente, nasceu no início da Idade Moderna2 a partir da fixação das 95 teses do então monge Martinho Lutero na Catedral de Wittenberg localizada na Alemanha. Tornou-se uma convenção chamar as ações individuais ou coletivas de oposição ao Catolicismo Romano antes deste período de Pré-reforma. Keith Randell diz que “Reforma foi o termo usado para descrever o complexo conjunto de fatos que durou a maior parte do século XVI, pelo qual uma significativa minoria dos membros da Igreja Católica foi perdida para as nova igrejas protestantes que se estabeleceram como rivais da Igreja de Roma”.3 Concordo com o autor quando afirma que a Reforma é um processo de deserção da Igreja Católica, discordo dele quando diz que este processo se restringiu ao século XVI. Penso que o processo de ruptura se estendeu, com a criação Metodismo, até o século XVIII. Os movimentos religiosos originados do abandono do Catolicismo Romano desencadeados pela ação de Lutero, nos séculos XVI e XVII, são denominados de Reforma e o Metodismo, filho do século XVIII, é considerado um ramo tardio da Reforma.
A periodização da Reforma demonstra haver uma afinidade entre Protestantismo e modernidade. Isto fica evidente se este último termo for compreendido no sentido que foi definido por Zygmunt Bauman: “Quero deixar claro desde o início que chamo de modernidade um período histórico que começou na Europa Ocidental no século XVII com uma série de transformações sócio-culturais e intelectuais profundas e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto cultural, como avanço do Iluminismo e depois como forma de vida socialmente consumada, com o desenvolvimento da sociedade industrial (capitalista e, mais tarde, também a comunista)”.4 Parece-me um fato que esta interpenetração vai muito além de uma coincidência cronológica. Há entre Protestantismo e modernidade uma proximidade de conteúdo.
Max Weber5 percebeu a profundidade deste relacionamento. Para que o capitalismo existisse, o sistema econômico do mundo moderno, seria necessária a existência de um “espírito do capitalismo”6, um universo de conceitos e ações marcados pela ânsia pelo lucro, pela disciplina do trabalho e pelo desejo de poupar. O sociólogo alemão preferiu não definir formalmente o espírito do capitalismo, ao invés disto preferiu analisá-lo, descrevê-lo extensivamente, além de afirmar que foi Benjamin Franklin quem expressou claramente este “espírito” em seus discursos. Este “espírito do capitalismo” foi construído através de um processo de determinação mútua com a “ética protestante”. Weber diz que a “aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais. Esta inversão do que poderíamos chamar de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio orientador do capitalismo, tão seguramente quanto ela é estranha a todos os povos fora da influência capitalista. Mas, ao mesmo tempo, ela expressa um tipo de sentimento que está inteiramente ligado a certas idéias religiosas”.7
Embora Weber tenha percebido que a relação entre os dois fenômenos não devesse ser interpretada como intencional, é fato que o capitalismo se tornou possível graças ao “espírito do capitalismo” e este foi gestado em uma profunda interpenetração com a “ética protestante”. Michael Löwy afirma que o “argumento principal de A ética protestante e o espírito do capitalismo de Max Weber não é tanto (como se diz com freqüência) que a religião é o fator causal determinante do desenvolvimento econômico, mas sim que existe, entre certas formas religiosas e o estilo de vida capitalista, um relacionamento de afinidade eletiva [...].” O sociólogo brasileiro pensa que Weber compreendeu a afinidade eletiva como um “relacionamento de atração mútua e de mútuo reforço, que, em certos casos, leva a uma espécie de simbiose cultural”.8 Também é possível raciocinar de forma inversa e pensar nas dificuldades da ética católica em lidar com as práticas mercantis, conforme assinalou Jacques Le Goff: “A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nessa data, a Cristandade, no auge da vigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária ameaçavam os velhos valores cristãos. Um novo sistema econômico está prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver necessita senão de novas técnicas, ao menos do uso massivo de práticas condenadas desde sempre pela igreja”.9 Deste modo, o Protestantismo nasce como necessidade de uma expressão religiosa que pudesse responder melhor à ética mercantil, condenada pelo Catolicismo Romano como usura, cada vez mais em ação no mundo ocidental moderno.
Peter Berger10 notou outra relação entre Protestantismo e modernidade. No Ocidente há um processo de secularização11 das imagens religiosas de mundo. Este processo finca suas raízes nos tempos do Antigo Testamento, mas foi acelerado pelo advento do Protestantismo na modernidade. A modernidade substituiu o conceito antigo e medieval de um mundo criado, ordenado e estabelecido por Deus pela noção de um mundo em aberto e passível de ser transformado pela ação humana. O nascimento de um sujeito racional, liberal, consciente, igual a seus semelhantes e que projeta seus fins e articula os meios para realizá-los dependendo somente de si, é uma construção tipicamente moderna. José Maurício Domingues acredita que “originalmente os filósofos da Ilustração e do utilitarismo acreditaram que o sujeito teria, salvo distorções que poderiam ser removidas, clareza em relação a seus interesses e objetivos; racionais por princípio, eles se organizariam mental e praticamente para utilizar-se do mundo a seu redor, inclusive de seu corpo, visando a realização de seus projetos”.12 Esta noção moderna de um sujeito autocentrado pode ser percebida com clareza no conceito protestante de conversão.
A conversão, no Protestantismo, é uma experiência direta de um sujeito com Deus. A dimensão comunitária desta experiência, de suma importância para o Judaísmo antigo, bem como para o Cristianismo antigo e medieval, é substituída pela noção de um sujeito que está só perante Deus e com Ele deve ter sua experiência de transformação de vida. O Deus que antes era compreendido como Criador e Mantenedor do Cosmos, passa a ser compreendido como Aquele que testifica seu poder a um sujeito que o experimenta.
A experiência de Deus no Protestantismo moderno perdeu sua dimensão objetiva para se tornar essencialmente subjetiva. Em um mundo de sujeitos autônomos e centrados, o eixo da divindade passa de “realidade objetiva” (externa ao indivíduo) para “realidade subjetiva” (processo interno de um determinado sujeito).
As igrejas protestantes vão se tornando, cada vez mais, o espaço concentrado de sujeitos que tiveram uma vida transformada por Deus, cuja experiência tem uma dimensão subjetiva em primeira instância. O indivíduo é o árbitro de sua experiência. A conversão passou a ser uma questão estritamente ligada à ação de Deus na alma de um sujeito, sem nenhuma verificabilidade externa. Compreendo que as observações de Antônio de Gouvêa Mendonça estão em sintonia com o que estou dizendo: “O conceito de conversão individual desenvolveu-se no protestantismo no bojo do processo de industrialização, primeiro na Inglaterra do século XVIII, com o movimento metodista de João Wesley e depois com a formação da civilização norte-americana, no interior do mito do progresso, e por intermédio dos Grandes Despertamentos”.14
A manifestação mais bem definida teoricamente desta forma de expressão religiosa, que desloca o eixo da “realidade” do ser divino enquanto exterioridade para a esfera da subjetividade, é a da teologia liberal, muito em voga na passagem do século XIX para o século XX, cujas principais idéias Rosino Gibellini resume da seguinte forma: “a) assunção rigorosa do método histórico-crítico e de seus resultados; b) relativização da tradição dogmática da Igreja, e particularmente da cristologia; c) leitura predominantemente ética do cristianismo. Em sintonia com o otimismo liberal, ela visava harmonizar o mais possível a religião cristã com a consciência cultural da época”.14 Esta tentativa de harmonizar a religião cristã com a cultura da época levaria o Protestantismo a assimilar valores e conceitos da filosofia da modernidade, conforme assinala Jürgen Moltmann: “O processo da prova cosmológica de Deus apóia-se no pressuposto de um cosmos ordenado. Nessa estrutura, o homem cognoscente considera a si mesmo como um ser animado e dotado de espírito. A ‘casa do ser’ é a sua morada no mundo. Esta concepção do ser foi superada pelo surgimento da subjetividade moderna, européia. Quando o homem, mediante o conhecimento, a conquista e a elaboração, se coloca a si próprio como sujeito do seu mundo, aquela concepção de um mundo visto como um cosmos fica destruída”. 15
As concepções da teologia liberal iriam suscitar reações como a do teólogo suíço Karl Barth, construtor de uma neo-ortodoxia cristã. Rosino Gibellini sintetiza da seguinte forma a reação de Barth ao liberalismo teológico: “Nenhum caminho vai do homem a Deus: nem a via da experiência religiosa (Schleiermacher), nem a da história (Troeltsch), e tampouco uma via metafísica; o único caminho praticável vai de Deus ao homem e se chama Jesus Cristo”.16 Seu labor teológico consistiu, fundamentalmente, em recolocar o eixo do ser divino no lugar que considerava correto. Entendo a teologia de Barth como uma crítica bem articulada ao subjetivismo a que a experiência do sagrado havia se reduzido: “O cristão é o Cristo. O cristão é aquilo em nós que não somos nós, mas Cristo em nós. Esse ‘Cristo em nós’ compreendido em toda a sua profundidade paulina: não significa um dado psíquico, nenhum estar-tomado, possuído ou coisa parecida, mas uma pressuposição. ‘Acima de nós’, ‘atrás de nós’, ‘transcendendo a nós’, isto é o que quer dizer o ‘em nós’.”.17
Parece-me um fato irônico que protestantes dos dias de hoje se refiram à teologia liberal como uma grande inimiga de sua fé, enquanto ambos têm em comum, pelo menos, a concepção de que a experiência do sagrado é algo atestado pela subjetividade humana e não uma realidade objetiva, exterior a quem o experiencia. A crítica de Barth, feita no início do século XX, ainda está por merecer eco no universo eclesial protestante dos dias de hoje.
Gostaria de terminar fazendo uma avaliação das conseqüências deste processo de subjetivação no Protestantismo moderno. O deslocamento da compreensão do palco da ação de Deus – do Cosmos para a alma de um indivíduo – transformou a religião em um assunto privado na mesma proporção que a natureza foi dessacralizada. Este fato coloca o Protestantismo na contramão dos novos movimentos religiosos, muito sensíveis à beleza e sacralidade do Cosmos e, portanto, muito preocupados com a sua preservação. Também coloca o Protestantismo na contramão das discussões filosóficas de caráter ético e comunitário. Na minha forma de ver, a teologia de Jürgen Moltmann é um exemplo de pensamento construído de forma crítica e em sintonia com a valorização da vida no sentido mais amplo possível. O projeto (e a execução) de sua teologia trinitária é um exemplo disto: “Vamos desenvolver aqui um pensamento relacional e comunitário, a partir da doutrina trinitária, e instaurá-lo na relação do homem com Deus, com os outros homens e com a humanidade, bem como na comunhão com toda a criação. Pelo acolhimento das concepções panteístas das tradições judaica e cristã, Deus, homem e mundo serão encarados ecologicamente na sua relação e convivência”.18
Se o Protestantismo nasceu com a pretensão de ser uma expressão religiosa capaz de constantemente se refazer, penso que aqui estão alguns aspectos para serem pensados, repensados e, quem sabe, transformados!

2 Quando falo aqui em Idade Moderna estou entendendo a expressão na sua forma mais simples, como o período histórico compreendido entre os séculos XVI e XVIII, conforme a convenção usada na historiografia de forma tradicional.
3 Keith RANDELL, Lutero e a reforma alemã, São Paulo: Ática, 1995, pp. 8-9.
4 Zygmunt BAUMAN, Modernidade e ambivalência, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, pp. 299-300.
5 Max WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Pioneira, 1992.
6 Ibid., pp. 28-51.
7 Ibid., p. 33.
8 Michael LÖWY, A guerra dos deuses, Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 34-5.
9 Jacques LE GOFF, A bolsa e a vida, São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 10.
10 Peter BERGER, O dossel sagrado, São Paulo: Paulus, 1985, pp. 117-38.
11 Ibid., p. 119. “Por secularização entendemos o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”.
12 José Maurício DOMINGUES, Sociologia e modernidade, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 29.
13 Antônio de Gouvêa MENDONÇA, Protestantes, pentecostais e ecumênicos, São Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 123.
14 Rosino GIBELLINI, A teologia no século XX, São Paulo: Loyola, 1998, p. 19.
15 Jürgen MOLTMANN, Trindade e Reino de Deus, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 27.
16 Rosino GIBELLINI, op. cit., p. 21.
17 Karl BARTH, Dádiva e louvor, São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 19.
18 Jürgen MOLTMANN, op. cit., p. 33.