segunda-feira, 5 de março de 2007

Pierre Bourdieu e o estudo das religiões

Introdução

O sociólogo francês Pierre Bourdieu nasceu em 1930 e faleceu no início de 2002. Foi a partir de 1964 que começou a se projetar como intelectual. Em 1982 passou a ser professor do renomado Collège de France. Embora seja propriamente um sociólogo, sua obra tem exercido forte influência sobre as ciências sociais e humanas de uma forma geral. Seus livros mais conhecidos são: O poder simbólico, As regras da arte, A economia das trocas simbólicas, A economia das trocas lingüísticas, A profissão de sociólogo, Razões práticas, A dominação masculina e meditações pascalianas.
Vou fazer uma apresentação/análise de cada um dos três textos, uma vez que há uma certa unidade temática entre eles, para somente no fim estabelecer aproximações para com o objeto empírico que pesquiso, o discurso sobre o Diabo da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2002).

1) O poder simbólico

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 17-58.

O trecho em análise é o segundo capítulo da obra e tem como título “Introdução a uma sociologia reflexiva”. O texto que originou o capítulo provém da introdução a um seminário ministrado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales em 1987 e tem cinco subdivisões: 1) ensinar um ofício; 2) pensar relacionalmente; 3) uma dúvida radical; 4) double bind e conversão e 5) a objetivação participante. No capítulo em destaque, Pierre Bourdieu faz um balanço de sua prática como sociólogo, bem como do habitus que rege a sua profissão.
O objetivo de tal balanço parece ser o de trazer à consciência uma série de conceitos e práticas que regem a profissão do sociólogo. Este profissional, que sempre procura analisar como um determinado habitus rege a ação de indivíduos em uma dada sociedade, ou que procura inserir determinadas práticas em um campo de possibilidades e conflitos, é conduzido pelo experiente Pierre Bourdieu a fazer o mesmo consigo enquanto sociólogo. É como se o sociólogo francês estivesse dizendo para seus alunos que eles precisam fazer consigo o que costumeiramente fazem com fenômenos sociais que envolvem os outros. O intelectual precisa fazer consigo e com sua profissão o que faz sempre com seus “objetos”, numa atitude de auto-objetivação.

2) As regras da arte

BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 243-347.

O trecho em destaque é composto de dois capítulos: 1) O ponto de vista do autor (p. 243-316) e 2) A gênese histórica da estética pura (p. 319-347).
O primeiro dos capítulos em análise tem quinze subdivisões, seguido de um apêndice: 1) o campo literário no campo do poder; 2) o nomos e questão dos limites; 3) posição, disposição e tomada de posição; 4) o espaço dos possíveis; 5) estrutura e mudança; 6) reflexividade e ingenuidade; 7) a oferta e a procura; 8) lutas internas e sanções externas; 9) o encontro de duas histórias; 10) a trajetória construída; 11) o habitus e os possíveis; 12) a dialética das posições e das disposições; 13) formação e dissolução dos grupos; 14) uma transcendência por instituição; 15) o desmonte ímpio da ficção.
O teor do capítulo está bem sintetizado pelo autor na primeira página do texto. Pierre Bourdieu está preocupado em construir os fundamentos de uma ciência das obras culturais. Esta ciência deve realizar três operações fundamentais: 1) fazer análise do campo literário no seio do campo do poder; 2) fazer análise da estrutura interna do campo literário e 3) analisar a gênese do habitus dos ocupantes dessas posições.
O segundo dos capítulos em análise possui seis subdivisões: 1) a análise de essência e a ilusão do absoluto; 2) a anamnese histórica e o retorno do recalcado; 3) as categorias históricas da percepção artística; 4) as condições da leitura pura; 5) miséria do anti-historismo e 6) a dupla historicização.
Neste capítulo Pierre Bourdieu faz uma análise da concepção de que a produção e o consumo artísticos não estariam condicionados por fatores de ordem social e histórica. Segundo esta concepção, a produção artística estaria desvinculada de interesses pessoais e de funções sociais, sendo um fim em si mesmo. O sociólogo francês analisa criticamente esta concepção anti-historicizante, propondo a re-historicização das obras de arte. O sociólogo termina seu texto afirmando que a história social da arte caberia bem como antídoto à concepção de que a arte se faz por e para si apenas.

3) Repercussão sobre a pesquisa empírica

As discussões teóricas de Pierre Bourdieu sobre a noção de campo são muito importantes para analisar o campo religioso brasileiro contemporâneo. Fundamentado na sociologia de Pierre Bourdieu, Leonildo Silveira Campos faz considerações interessantes sobre o campo religioso brasileiro. O campo religioso brasileiro teve o Catolicismo Romano como religião majoritária durante a maior parte da história do país. Em meados do século passado o protestantismo começou a se instalar no país de forma tímida e gradual. No início do presente século o protestantismo chegou a fixar suas raízes institucionais, sendo, todavia, ainda inexpressivo do ponto de vista numérico. No século XX grandes transformações vão ocorrer no campo religioso brasileiro com a explosão das religiões afro-brasileiras e o nascimento, expansão e posterior explosão do pentecostalismo. Na atualidade o Catolicismo Romano disputa sua hegemonia no campo religioso brasileiro com as religiões afro-brasileiras e com as várias expressões do pentecostalismo. A chegada constante de novos agentes no interior do campo religioso brasileiro tem tornado a disputa cada vez mais acirrada.
Penso que as afirmações acima de Leonildo Silveira Campos se casam muito bem com as considerações de Pierre Bourdieu. É desta forma que Pierre Bourdieu analisa a conceituação de religião e magia no interior do campo religioso. A expressão religiosa que está buscando o seu estabelecimento no campo religioso tende a relegar ao universo da magia a religião do outro no intuito de afirmar a sua legitimidade religiosa.
Se é possível interpretar as crenças e os ritos no Diabo e seus demônios na I.U.R.D. como construtoras de teodicéias, também me parece possível interpretá-los como desconstrução da teodicéia alheia. Usando termos da sociologia de Pierre Bourdieu, a I.U.R.D. desconstrói o status das religiões concorrentes, afirmando o seu aspecto mágico. Através do rito de exorcismo, a I.U.R.D. não apenas constrói e mantém a sua teodicéia, mas também concorre com outras teodicéias em um vasto e competitivo mercado religioso. Isso acontece através de processo de demonização da religião do “outro”. Podemos perceber isto através da atribuição de nomes de orixás das religiões afro-brasileiras aos demônios que atormentam a vida das pessoas. A presença e o próprio testemunho dos demônios confere um status de objetividade à teodicéia da I.U.R.D. ao mesmo tempo que procura “desmascarar” a teodicéia do religião concorrente.
Não é pela fala do dirigente do culto que as pessoas podem verificar o aspecto “farsante” das teodicéias concorrentes, mas pela própria voz dos demônios, que se autonomeiam identificando-se com os orixás. Nas outras religiões, especialmente na Umbanda e no Catolicismo, não há teodicéia eficaz, logo, não há funcionalidade do discurso. É só na I.U.R.D. que se tem a “verdadeira” resposta para os problemas humanos. Aqueles que têm buscado resposta em outras religiões e não têm encontrado esta resposta, são desafiados a aderir à “verdadeira” resposta, à “verdadeira” teodicéia, e esta só pode ser encontrada na I.U.R.D. Penso que a I.U.R.D. tem feito isto com muita eficácia, haja vista o seu crescimento no Brasil e no exterior.