quarta-feira, 7 de março de 2007

Roger Chartier e o estudo das religiões

CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, s.d. p. 13-89.

Roger Chartier, diretor de investigações na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, é o mais importante expoente da história cultural francesa da atualidade. O livro em destaque é composto de oito ensaios publicados entre 1982 e 1986, tendo se transformado em referência fundamental para a construção e consolidação do campo denominado na atualidade de história cultural.
O trecho que vou resenhar abrange três itens: 1) Introdução: Por uma sociologia histórica das práticas sociais (p. 13-28); 2) Primeiro capítulo: História intelectual e história das mentalidades, uma dupla reavaliação (p. 29-67) e 3) Segundo capítulo: O passado recomposto, relações entre filosofia e história (p. 69-89). Abaixo vou fazer uma apresentação/análise de cada um dos três itens para, no fim de cada um, estabelecer aproximações para com o objeto empírico que pesquiso, o discurso sobre o Diabo da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2002).
Vejo a Introdução como tendo um duplo objetivo: primeiro, o de fazer uma conexão entre os diferentes ensaios que provêm de datas e circunstâncias diferentes e, um segundo, o de situar historicamente a constituição do campo da história cultural nas suas continuidades e descontinuidades com a historiografia francesa de uma forma geral.
Ao ser confrontada pelas ciências exatas e sociais, a historiografia precisou responder por sua cientificidade e interdisciplinaridade, passando a incorporar novos procedimentos e novos objetos, fato que levaria a uma verdadeira revolução no campo das pesquisas históricas na França. Estava preparado o espaço para a emergência de uma história cultural, restando estabelecer com mais precisão os seus parâmetros. Para Roger Chartier a história cultural deve realizar suas análise a partir do entrelaçamento de três categorias fundamentais: representação, apropriação e prática (p. 27). Abaixo procuro localizar trechos do texto em que o autor conceitua cada um destes três conceitos importantes.
1) Representação: “Desta forma, pode pensar-se uma história cultural do social que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.” (p. 19).
2) Apropriação: “A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo atenção às condições e aos processos que, muito concretamente, determinam as operações de construção de sentido (na relação de leitura, mas em muitas outras também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as inteligências não são desencarnadas, e, contra as correntes de pensamento que postulam o universal, que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias históricas.” (p. 26-27).
3) Práticas: “Por outro lado, esta história deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido. Rompendo com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único – o qual a crítica tinha a obrigação de identificar –, dirige-se às práticas que, pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo. Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação” (p. 27).
Penso que o significado da palavra representação em Roger Chartier circula dentro do horizonte da filosofia foucaultiana, que será usada na minha tese como principal interlocutora. O historiador francês parece não pensar em representação no âmbito da filosofia do sujeito, nem a partir de uma concepção de referencialidade, mas como constituidora da realidade, como o é o discurso para Michel Foucault. Deste modo me possibilitaria falar em representações do Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus e me faria investigar de que modo estas representações são construídas a partir de apropriações dos textos bíblicos por parte da liderança e dos fiéis da referida igreja. Também me faria voltar o olhar para o modo como as representações sobre o Diabo constituem sentido para a vida das pessoas a partir práticas de apropriação e como funcionam para ordenar o mundo das pessoas a partir de práticas discursivas.
O primeiro capítulo faz uma avaliação dos procedimentos da história intelectual e da história das mentalidades para apontar as suas lacunas e propor pistas de como a história cultural deve proceder com vistas a superar estas limitações. O recurso utilizado por Roger Chartier para fazer esta avaliação é o de historiar o campo intelectual francês para demonstrar os dilemas enfrentados pelos que se ocuparam em analisar a articulação das idéias com o social. Depois de sua longa digressão histórica, o autor passa a propor três procedimentos que devem contribuir para a superação dos limites encontrados até então no campo historiográfico quando se ocupava da relação entre as idéias e o social. Abaixo abordo cada um destes três procedimentos.
1) Superar a divisão entre cultura letrada/elitizada e cultura iletrada/popular: “saber se pode chamar-se popular o que é criado pelo povo ou àquilo que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa antes de mais identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam e se imbricam diferentes formas culturais.” (p. 56).
2) Superar a oposição entre criação/produção cultural e consumo/recepção cultural: “restituir essa historicidade exige em primeiro lugar que o consumo cultural ou intelectual seja ele próprio tomado como uma produção, que evidentemente não fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que nunca são idênticas às que o produtor, o autor ou o artista, investiram na sua obra. (...) Anular o corte entre produzir e consumir é antes de mais afirmar que a obra só adquire sentido através da diversidade de interpretações que constroem as suas significações.” (p. 59).
3) Problematizar a oposição entre realidade e representação: “O real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é (ou não é apenas) a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade da sua produção e na intencionalidade da sua escrita.” (p. 63).
O estudo das representações sobre o Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus me levaria a investigar como os produtos culturais circulam entre as diferentes categorias sociais (letradas e populares, no caso específico, liderança e fiéis da igreja) e como o ato de leitura bíblica, antes de ser apenas um consumo de informações sobre o Diabo, é um ponto a partir do qual as pessoas criam suas representações sobre o ser entrevado e a partir disto ordenam e dão sentido às suas vidas.
O segundo capítulo aborda um velho e espinhoso problema, o da relação entre os campos da história e da filosofia. Embora o texto tenha sete subdivisões, penso que a sua redução àquilo que lhe é essencial colocaria três questões fundamentais. A seguir, uma breve análise de cada um destas três questões.
1) A resistência dos filósofos à historicização de seu objeto: “Para Febvre e para os historiadores dos primeiros Annales, a história da filosofia tal como a escreveram os filósofos ilustrou o pior de uma história intelectual desencarnada, fechada sobre si mesma, dedicada em vão ao jogo de idéias puras.” (p. 70). Para a superação deste dilema Roger Chartier propõe reinserção da história da filosofia na história da produção intelectual. Proceder desta forma implicaria em compreender a racionalidade de um discurso filosófico na historicidade de sua produção e nas relações que mantém com outros discursos (p. 73).
2) A resistência dos historiadores à incorporação dos resultados das reflexões filosóficas no seu campo de estudo: “É na verdade a Hegel, que é preciso recorrer se se quiser compreender de modo correto a distância acentuada entre práticas dos historiadores e a representação filosófica da história.” (p. 73). A aversão à repercussão da filosofia hegeliana sobre o campo da história, teria produzido uma rejeição do discurso filosófico no seu todo. O filósofo Michel Foucault teria sido o grande responsável pela crítica da influência das categorias hegelianas sobre a historiografia, abrindo um novo espaço de diálogo entre os dois campos.
3) A discussão sobre a narratividade da história como um exemplo de um dilema filosófico no interior do campo historiográfico: “A questão com que se defronta a história nos dias de hoje é da passagem de uma validação do discurso histórico, fundado no controle das operações que estão na sua base – nada menos do que arbitrárias –, a um outro tipo de validação, permitindo encarar como possíveis, prováveis, verossímeis, as relações postuladas pelo historiador entre os vestígios documentais e os fenômenos indiciados por eles ou, noutros termos, as representações manipuláveis hoje em dia e as práticas passada que elas designam.” (p. 86).
O relato sobre as representações do Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus que devo construir não pode ser encarado como um desvelamento de uma realidade pela mediação do documento, mas como uma produção cultural/discursiva, cuja validação deve estar condicionada à sua probabilidade e não veracidade.